quinta-feira, 29 de março de 2012

Cap 1 - Polêmicas Alheatórias



Um trânsito ensurdecedor acontece. A noite cai fragorosamente. Pessoas de todo tipo, como cobras em ninho, avistadas de longe, aparecem à minha irrelevante percepção um só emaranhado, desconexo ou indecifrável código de expressões. Formam elas um carnaval todo espaçoso, onde as marchinhas entoadas pela gente vadia de todo porte, ganham coro como se estivessem presentes entre os tão narcisistas e compungidos silêncios desses transeuntes.


Enquanto isso eu e Callis, meu namorado, bebericamos em perdidas contas nossas sagradas cervejinhas à mesa de um botequim. Fazemos isso toda sexta feira depois de acabados nossos expedientes. Logo após decidimos para onde ir. Ambos pausamos por diversas vezes a longa conversa que mantemos, ora para percebermos o intrigante de nossos destinos e essências ou ora só para rirmos das bobagens que nada nos alegraria senão fosse a percussão de nossos voluptuosos cigarros.


Entretanto as pessoas envolta certamente já perceberam uma estranha afinidade entre nós dois, afinidade essa que certamente vai muito mais além do que a estreita camaradagem dos boêmios oriundos dos tempos mais primórdios. Pois na nossa prosa de melíflua cadência, o que mais se ecoa é a sincronia de nossas almas amigas e amantes.


Callis veste seu provocante traje social de sempre - camisa clara engomada, calça escura, sapatos bem polidos e todavia estreados. Callis é um homem alto, moreno, viril. Seus olhos são feitos de uma madeira forasteira, seus cabelos lisos e volumosos, que mais parecem jubas , próprias dos nativos leoninos. Ele para mim é um digno portador de charme e sorriso exuberantes, não obstante bem aveludados por sua considerável discrição , o que por sinal é o que mais me fascina na sua alma. Não tenho nada a ver com ele (em partes), afirmo. Sou um pouco mais extravagante. Minha tez de porcelana me dá um ar de ingenuo, qual pequeno querubim e vem acompanhada de meus dois castanhos olhos, olhos esses que já decairam-se em tudo de mais oculto e antigo deste mundo. Consideravelmente meus lábios, rubros e carnudos, vêm tinidos com delicados contornos, próprios de acabamentos artísticos, qual virgem donzela que de tão pura na intensão do pintor acaba por ser tachada de "insinuante".


Nesse sombrio bar, Callis destaca-se por sua herculana beleza, já eu pareço atrair a atenção de qualquer beberrão ou vadia que se aproxime da gente. Trajo uma cintilante e dourada blusa comprida, acompanhada de uma longa e não menos ousada saia. À moda hippie, por sinal. Suas diretrizes roxas servem de fundo a estampa de rosas detalhadamente bem bordadas, fazendo de mim aos olhos alheios uma figura quase fictícia.


Ás vezes fico imaginando o que se passa na cabeça das pessoas. Devem julgar a cena de nós dois nessa mesa muito peculiar. Sim, pois ambos parecemos tão emergidos na harmonia de nossos miúdos papos desatados e ao mesmo tempo tão desconexos e paradoxais a julgar pela aparência. De onde um veio certamente o outro não haveria de vir - devem pensar. Talvez nos julguem estrangeiros, que deveras falam num desacorrido dialeto, pois para mim é evidente que o esboço do que mostram as pessoas nesse momento forma uma nuance de reações - enquanto de uma parte podemos ouvir uma certa maliciosa zombaria, doutra notamos pequenos fuxicos nada disfarçáveis (e isso me mata!). Outra parte apenas nos olha de soslaio e, parecendo não muito se importar, volta-se com suas atenções aos seus demais interesses.


Aconchegando-se um pouco mais, Cillas me mostra uma revista. Na capa , esta pessoa que vos fala - Ora, perdoem-me a indelicadeza, não me apresentara ainda. Satisfação, Téo Velmont! - sou destaque. Apareço no meio de um auditório sendo bem ovacionado pelas pessoas em minha volta.


- Veja só, Téo, é você! - Falara Cillas empolgado - A percussão do que fora dito por você no Thinking At All, sábado passado, ganhara fronteiras em todos os veículos de mídia nestes últimos dias.


- Confesso que não entendo por quê. - Dou uma leve pausa para tragar o cigarro que levo nos dedos - Quando eu fora convidado por minha amiga, Clarice Kemper, editora do tabloide, Now News Blown, sabia que iria a um programa que, apesar de ser bastante interessante pelos seus conteúdos, mais serve de uso desinteressado da mídia na semana decorrente devido os debates de proporção maior que algumas vezes nele são emitidos.


- Ora essa, não seja tão cínico! - Cillas crava-me um olhar debochado - Você tanto fizera que, de um simples audiente, passara a ser convidado ao palco. Você praticamente desbocara esse velhote metido a sagrado aqui, e ainda por cima sendo descabido da forma que você bem o é, certamente haveria de estar em plena sã consciência do oportunismo que isso lhe representaria.


- Eu, particularmente, acho você muito atrevido por tal sinceridade - sorrio - e isso merece um brinde de nossa parte, uma vez que a cerveja te deixa mais amargo que de costume, seu tolo!


Ingenuamente nós sorrimos e ao brindarmos, o tinido de nossos copos parecera despertar mais atenção em quem estava por perto.


- Nossa, parece que estamos sendo vigiados por tropas militares - Enfatizo enquanto devolvo o copo à mesa.


- Que seja! Isso nos diverte, isso sim, e a cada vez mais! - Cillas me corresponde com desdém - Mas não vamos fugir ao assunto, rapazinho! Veja bem aqui, Téo, é você nessa capa! Sejamos justos ao reparar a incrível acessibilidade que você obteve nesta semana depois do que fizera. Dá para acreditar? Eu estou muito orgulhoso de tudo isso, meu amor, estou muito orgulhoso de você!


Pego a revista e fixo-me demoradamente na minha imagem estampada na capa.


- É... ele fizera um bom trabalho - Insinuo.


- Ele fizera? - sorri Cillas.


- Sim, esse cara aqui fora bem esperto.


- "Esse cara"? - Cachoa - Vem cá, seu ego aí não está por demais da conta não?


- Você não está entendendo, Cillas, meu querido. Eu estou falando muito sério. Esse cara aqui certamente não sou eu!


- Como assim não é você? De quem se trata então?


- Mas agradeço de antemão o seu carinho. - Falo com timidez - Suas considerações ao meu respeito muito me são caras, tal qual a lástima que gorjeio de sentimentos por você. Mas hei de ter que afirmar isso com plena veemência: Esse aí que nós vemos nessa capa não se trata exatamente de minha pessoa. A pessoa em destaque é outra, com toda certeza . Ela não sou eu, de jeito nenhum . Sabe por quê, Cillas? Eu não existo! É isso mesmo, você entendeu ... eu não existo de forma al-gu-ma!


Intrigado, Cillas diz :


- Não estou entendendo mesmo, Téo , perdoe-me. Ultimamente você tem andado assim, meio subjugado. O que esta havendo?


- Nada de mais! - tranquilizo-o - Só estou querendo dizer que essa pessoa que você vê na capa não se trata propriamente dessa mesma que se encontra aqui, mediante a sua tão querida presença. Até mesmo porque essa pessoa, no caso eu, é uma simples criação ou projeção mental do Universo. Ela só é apercebida pelos demais enquanto o Universo não se der conta de sua fantasia. Quando o fizer de certa maneira tratará de a extinguir. A verdade, meu querido, é que eu não existo de forma alguma. Nunca estive aqui nem nunca chegarei a estar. Tenho que te esclarecer. Já este alguém aí qual você contempla nessas escabrosas páginas, confesso, até mesmo o desconheço, visto que se trata de um indivíduo a parte. Pode ser idêntico a mim no que tange o semblante, mas estamos falando a respeito dele, exceto de quem está tendo contigo agora. 


- Papo estranho esse teu, Téo. Não estou gostando nada disso. - Cillas admite seu receio.

- Ora, por que do espanto? É desnecessário! - Suavizo - A pessoa que está sendo mostrada interagindo nesse revista vagabunda e chinfrim é totalmente distinta e separada desta pessoa que está interagindo nesse devido instante com você, certo? E esta pessoa com a qual você interage logicamente não o faz de igual forma consigo mesma, até mesmo porque sabe que não há com o que ou quem ser afim de vincular-se.


- Entendo. Mas aonde você quer chegar com essa história?


- Você me conhece muito bem. Sabe que me considero uma pessoa sem qualquer padrão ou biografia. Não tenho passado nem futuro. Aliás, tenho vivido aqui por trinta e dois anos e não sou absolutamente nada! Uma vida pode se elar com outras, meu caro. Mas isso só acontece porque na realidade ela, e quiça as outras, não podem possuir a real e plena existência.


Abro um pequeno sorriso e ouso acariciar-lhe as mãos, vagarosamente. 


Continuo:


- Deixe estar, meu querido, mais tarde eu te explicarei tudo isso mais claramente ...


- Ah, não! Mais tarde eu não quero saber de nenhuma explicação! - Cillas se devencilha de mim e faz uma pequena pausa - A não ser, é claro, a respeito de outras coisinhas, se é que me entende...


Aliviado do tensão que sua pausa me provocara, trocando um cúmplice sorriso, nós dois em seguida nos acariciamos nas faces. Mas de rompante uma risada sarcástica urge dos fundos. Viramos imediatamente e avistamos dois homens que nos encaram. Balbuciam eles apelidos de baixo nível e Cillas, um pouco enebrio , afasta sua cadeira e fecha o punho no cerne da mesa, voltando-se com altivez para esses comparsas, questionando seus indevidos comportamentos. Tão logo o fez e eu, já visionando no que isso poderia acarretar, não dispensei a tentativa de lhe advertir que não alimentasse em vão algum covil de abutres.


Baixinho lhe digo:


- Se for o caso, meu amor, saimos daqui, não tem problema. Vamos para a casa, até mesmo porque o horário já é propício para tal. Mas Cillas, meu anjo, por favor, não se entregue a nada que não valha realmente a pena.


Cillas hesita um dado momento e por enquanto os outros dois encrenqueiros continuam com mais  lascívas insinuações, certamente a espera de mais um real pretexto vindo da parte de Cillas para um escândalo finalmente acontecer. Mas Cillas, considerando o meu pedido, solicita a conta à gerência e enquanto o garçom se aproxima, os murmúrios e escárnios advindos dos outros dois ogros ganham mais timbre.


- Não vou admitir isso de forma alguma, Téo. - Esclareceu em baixo tom Cillas para mim - Daqui por diante não adianta tentar me evitar de reagir. Nós já aguentamos muita coisa calados , mas chega uma hora que o limite estrapola e isso, como homem que sou e não deixo de ser, não vou suportar. Vamos embora daqui agora, mas se isso voltar a acontecer, esteja certo de que eu não respondo por mim, fique sabendo!


- Sim, meu querido, concordo em número, gênero e grau contigo. - Balbucio - Muito obrigado, de verdade. Eu te amo, não se esqueça, mas agora vamos!


Saímos, porém, de mãos dadas, e isso gerara mais alarde por parte dos beberrões. Na saída, entretanto decido me voltar àqueles dois indivíduos e levo com destreza minha mão à cintura, puxando o cós da minha saia. Adoro fazer isso!


Fito-os por um longo tempo. Mas especialmente decido encarar o mais saidinho dos dois. Por incrível que pareça nesta hora nada fora dito, apesar das demais conversas que em constância urgiam ao nosso redor, juntamente com a perplexidade vinda por parte de alguns espectadores ainda avulsos. Callis, me acordando para a realidade, puxara-me levemente pelas mãos e nesse instante nos pomos a ir.


Depois de silenciosamente entrarmos no carro e Callis dar a marcha, fecho meus olhos e cuidadosamente ponho-me a sorrir. Callis, apesar de estar enraivecido pelas derradeiras circunstâncias que há pouco enfrentamos, volta-se intrigado para mim e pergunta a causa de tal risada. Não lhe respondo de prontidão , pois presto atenção à visão que me aparece.


No bar, nesse mesmo instante, uma grande algazarra acontece. Um dos homens que há pouco zombava de nós, tratando-se justamente daquele pelo qual encarei por um período mais longo, encontra-se estirado ao chão banhado em sangue. As pessoas em sua volta não sabem mais como se sentirem mormente aterrorizadas. Seu outro parceiro, em caótico desespero, está decaído no outro lado da esquina. Havia conseguido por sorte se desvincilhar da confusão passada que em poucos instantes ocorrera.


Minha visão oculta nunca me abandona. Também confesso que não o encarei em vão. Sabia do que se tratava aquilo. Pude sentir, coincidentemente, algo premonitório antes da nossa saída. Mas somando com a raiva que eu estava sentindo pude constatar que minha honra não estaria jogada ao vento em qualquer hipótese.


Já seguindo prévia estrada, de dentro do carro pude tudo muito rapidamente perceber. Segundos depois de Callis e eu nos retirarmos daquele recinto, alguém encapuzado, surgido do interior de um escuro veículo, atingira com magnitude uma bala certeira no peito de um dos até então zombeteiros beberrões e escafedera-se. Tudo fora muito rápido e inesperado. Não conseguiram ver de quem se tratava . As pessoas voltavam para verificarem os rastros da tragédia. O outro boêmio, decaído na calçada, via-se agora amparado por algumas pessoas enquanto tentava exsurgir do susto e constatar as proporções daquele trágico enredo mortificante. Seu amigo não resistira até o socorro chegar. 


Depois de desfrutar da minha espontânea visão, lentamente abro meus olhos. Sinto a brisa alcoviteira e juvenil que vem de encontro ao meu rosto da estrada pela qual dirige Cillas em volátil velocidade.


- Dá para me responder, Téo? - Cillas interrompe meu devaneio com autoridade - O que te inspira a sorrir depois do que acabamos de passar com aqueles dois idiotas no boteco? Ah, faça-me o favor, né ?!


- Nada, meu querido, nada ... - uso um tom melífluo - Mas saiba, antes de mais nada, meu bem, que caso nós não aprendamos a sorrir das nossas próprias tristezas, quem de nós saberá um dia chorar por causa de alguma felicidade?


Sem mais uma palavra proferida por ambas as partes, seguimos avante...


x x x